quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Introdução ao estado atual do mundo


Introdução ao estado atual do mundo

Jacques Labeyrie

Esse título, “Introdução ao estado atual do mundo”, quer dizer simplesmente: “De que forma representamos hoje o mundo que nos rodeia?” Vou falar aqui sobre as grandes idéias que nos permitem fazer uma representação do cosmos.
Tais representações, é claro, não datam de hoje e remetem a um passado bem distante. Citarei duas enormes conquistas científicas: aproximadamente três séculos antes do início da era cristã, Aristarco de Samos já compreendera, e assim ensinava em Alexandria, que a Terra é redonda, que ela gira em torno de si mesma a cada dia e que gira também, a cada ano, em torno do Sol; um século mais tarde, Eratóstenes, um outro grego do Egito, encontra, por sua vez, um meio para medir o raio da Terra — e portanto sua circunferência — com uma precisão bastante razoável.
Num campo mais geral, Demócrito (por volta de 400 a.C.) e depois Lucrécio (por volta de 60 a.C.) conceitualizam a existência dos átomos por pura intuição. No Ocidente cristão, ao contrário, durante os quinze séculos subseqüentes, ninguém parece interessar-se pelo conhecimento do cosmos, nem sequer pelo das leis naturais.
Vem depois um despertar: o Renascimento. As descobertas começam a ganhar impulso. Para limitarmo-nos ao campo do cosmos: Nicolau Copérnico — dezessete séculos depois de Aristarco — redescobre que o Sol encontra-se no centro do universo (heliocentrismo), O alemão Johannes Kepler elabora suas três leis sobre a revolução dos planetas. Galileu, perto de Florença, observa pela primeira vez a Lua e os maiores satélites de Júpiter com a ajuda de um telescópio; ele também faz experiências sobre a queda dos corpos. Isaac Newton, em Londres, compreende por sua vez que a luz branca compõe-se de luzes coloridas e também que a matéria atrai a matéria (teoria da atração universal), mesmo a distância, o que é uma idéia extraordinária. Olaüs Römer, no Observatório de Paris, descobre que a luz tem uma velocidade e consegue medi-la. O francês Pierre Simon de Laplace imagina que o sistema solar é originário de uma nuvem de poeira cósmica. Foram todos esses gigantes do pensamento científico que construíram nossa atual concepção do cosmos...
Mais próximas de nós, pois elas datam de 1930, temos as observações do americano Edwin Hubble mostrando que a coloração avermelhada do espectro das estrelas e das galáxias é proporcional a distância das mesmas. Ou o universo está em expansão, ou então uma interação ainda desconhecida afeta, a longo prazo, a energia dos raios luminosos. Se o universo está em expansão, em que ele vai se transformar? Será que um dia ele deixará de crescer? Mas, se ele está em expansão, é porque um dia ele foi menor, portanto mais condensado e, por conseguinte, mais quente. Quais foram então os primeiros estados do universo? Teria ele sido uma espécie de gás incrivelmente quente e comprimido? A resposta, no momento, não está ao alcance dos meios de previsão da física atual.
Além de nosso universo atual, teria restado dessa explosão original uma irradiação eletromagnética que, mesmo bastante intensa, é forma¬da apenas de partículas de luz (fótons) possuidoras de urna energia ínfima, como se tivessem sido produzidas por uma matéria à temperatura próxima do zero absoluto. Essa bela teoria do Big Bang não merece de fato o qualificativo de teoria, pois baseia-se sobre fenômenos que são, em sua maioria, puramente imaginários, resultantes de ex-trapolações das aquisições no campo da física das partículas elementares. Entre¬tanto, ela conhece uma onda de sucesso considerável, o que mostra bem que a representação do cosmos, como em épocas anteriores, compreende ainda hoje uma enorme parcela de sonho.
Diversas descobertas recentes alimentam o desenvolver da física moderna. Uma das mais impor-tantes foi feita por John Dalton, no início do século XIX, em Manchester: ele reinventou a teoria atômica, que passou a se fundamentar, a partir de então, sobre medidas reais. Cem anos mais tarde, ainda em Manchester, Ernest Rutherford descobriu o núcleo do átomo e a maneira pela qual se pode transmutá-lo, descobrindo também, portanto, como se faz sua síntese. A análise dos espectros da luz das estrelas já ensinara, por outro lado, que não existem no mundo outras espécies atômicas além daquelas que temos na Terra. Desde então, física e cosmogonia não passam de urna mesma ciência, bastante popular, o que é um testemunho da inclinação sensível dos homens pelo puro conhecimento do universo.
O conhecimento da superfície dos planetas fez alguns progressos desde que dispomos de sondas espaciais. Alguns desses engenhos foram enviados a três planetas: Lua, Marte e Vênus. E até mesmo doze homens, no total, já foram enviados à Lua. Também já se foi sondar de perto quatro outros grandes planetas e alguns de seus satélites. Graças às medidas isotópicas obtidas em laboratório a partir de amostras, sabe-se que a Lua, Marte e os meteoritos têm a mesma idade que a Terra: 4,5 bilhões de anos (e temos quase certeza de que isso também é válido para todos os outros planetas, até mesmo o próprio Sol).
Quatro anos antes do início do século XX, a descoberta da radioatividade da matéria, no museu de história natural de Paris, permitiu também compreender de onde vem o calor das estrelas: elas queimam sua própria matéria. Nosso Sol, por exemplo, produz 3,8 x 1033 ergs por segundo e queima para isso, ao mesmo tempo, 4,2 milhões de toneladas de hidrogênio (ou, mais exatamente, transforma-as em hélio). Mais tarde, quando envelhecerá, nosso Sol sintetizará outros átomos, especialmente os que são indispensáveis à vida: carbono, azoto, oxigênio, enxofre etc. (mas não os que são mais pesados que o ferro), graças às temperaturas de diversos milhões de graus que a gravitação gerou em sua região central. Esses átomos vão evaporar-se pouco a pouco da estrela sob a forma de um vento solar. É portanto aí, no ventre de estrelas semelhantes, que se constituiu pouco a pouco a matéria de que é feito o universo.
Sabemos também de onde vêm os outros átomos, os mais pesados. Foi no momento da fase final da vida das estrelas mais pesadas, numa explosão resplandecente, que ocorreu, num instante, a síntese desses átomos que seriam, depois, projetados no espaço em forma de pó. Esse pó de átomos vindo de múltiplos sóis, reagrupado bem mais tarde em nuvens delgadas nos cantos sombrios da galáxia, servirá para reformar um dia, graças à gravitação, novos sistemas solares. Os átomos pesados não foram criados de forma contínua, como os leves, mas em explosões grandiosas, e é isso que chamamos de “supernovas”. A parte externa da estrela que compreende esses átomos pesados é então projetada no espaço numa velocidade de alguns milhares de quilômetros por segundo e, durante vários milenários, ela continua a expandir-se. Por exemplo, uma explosão como essa foi visível da Terra durante o verão de 1054. Ela brilhou então como uma Lua cheia durante diversos meses e, ainda hoje, pode perceber-se sua nuvem com a ajuda de uma boa luneta. No ponto em que se encontrava o centro da supernova, criou-se uma pequena maravilha, um minúsculo resíduo de matéria de um tipo extraordinário: o pulsar. Ë um aglomerado de nêutrons, de uma densidade espantosa, rodopiando loucamente sobre si mesmo, envolto por campos magnéticos de uma intensidade inconcebível e que deverá emitir durante milenários, em enorme quantidade, toda a gama de partículas luminosas, os fótons, desde os raios gama e X até as ondas rádio,
Mas passemos a uma outra escala, passemos a dimensões dezenas de milhares de vezes maiores e veremos então que as galáxias, pelo menos as mais jovens, contêm igualmente uma maravilha. Ë provavelmente perto do centro delas, num pequeno volume em que a matéria atinge uma abundância e uma concentração que são talvez dezenas de milhares de vezes maiores que as dos pulsares, que se engendra o quasar, um emissor ainda mais prodigioso de fótons, visível a milhares de anos-luz de distância. Nesse campo, nossa física ainda é insuficiente. Podemos ver esses quasares, mas por enquanto ainda é impossível explicar seu mecanismo.
O estudo do cosmos longínquo permitiu a observação de fatos que modificaram significativamente nossa visão do mundo, mesmo se temos dificuldade para compreender certos fenômenos que estão muito aquém do que pode ser realizado em nossos laboratórios. Mas esses fenômenos imensos e longínquos não são os únicos a nos intrigar. Assim, desde o início do século XX, o impacto da teoria da relatividade geral de Albert Einstein sobre a cosmogonia tornou-se considerável, sobretudo após a verificação do fato que um raio luminoso tangente ao Sol sofre um desvio, o que significa que um fóton tem realmente uma massa, como Einstein havia previsto. Por volta de 1990, foram descobertas as imagens gravíficas de uma galáxia longínqua, criadas pela massa de uma galáxia situada entre ela e a Terra, o que confirma mais uma vez esta propriedade de os fótons terem realmente uma massa.
Desde o início do século XX impôs-se também no campo da física o estudo das partículas elementares da matéria (os átomos e os elétrons, antes de mais nada) e da luz (os fótons). Nesse mundo dos objetos considerados um por um, as belas certezas de outrora desapareceram. Tais certezas deviam-se ao fato que a menor partícula de matéria que conhecíamos então, o menor fluxo de luz que tínhamos o hábito de levar em consideração, a menor corrente elétrica que éramos capazes de medir eram formados, no mínimo, por um número imenso de elementos. É muito difícil observar esse mundo do individual que temos tendência a chamar de mundo quântico e que na maioria das vezes é muito pequeno. E é ainda mais difícil encontrar as leis que o regem. Mas as aplicações dessas observações já são de grande importância e ultrapassam provavelmente as que resultaram das descobertas das leis da termodinâmica e depois as do eletromagnetismo, no início do século XX,
Uma das conseqüências mais evidentes desses novos estudos é verificável rio campo dos semicondutores e do desenvolvimento quase imediato da informática que ocorreu em seguida. Todo um domínio, o dos cálculos de todos os tipos, foi revolucionado em alguns anos; um outro campo, o da imprensa, do rádio, do telefone, também está sendo, pois hoje em dia pode-se encontrar e difundir praticamente todo tipo de informação a partir do momento em que ela tenha sido publicada em algum lugar. Pode-se também, agora, estabelecer uma comunicação com quem quer que seja, em qualquer ponto do globo, e na hora desejada.
Essa mudança atinge ainda pouca gente. Mas os que estão a par de tais inovações têm a impressão bastante nova de que a superfície da Terra encolheu e não somente por meio dos pro-gressos enormes das técnicas que permitem, por exemplo, que em menos de dois dias de viagem seja possível transportar-se para o ponto mais distante de nosso planeta.
A maioria das crianças que freqüentam a escola e às quais são ensinadas essas conquistas recentes do conhecimento não tem, ao que pare¬ce, nenhuma dificuldade para interessar-se pelas mesmas e dominá-las. Mesmo quando o aspecto lúdico não existe e, mesmo ainda, quando as crianças são informadas somente pelas revistas populares ou pela televisão, elas se apaixonam de bom grado por conhecimentos tão abstratos quanto a astrofísica e até mesmo pela física quântica ou ainda pelas novas ciências da Terra ou ciências biológicas. Freqüentemente, essas crianças estão decididas a aprofundar seus conhecimentos nestes campos mais tarde, quando serão adultas. Creio que as coisas não se passavam assim outrora, quando numa escola austera, quase que única dispensadora de conhecimento, as crianças entediavam-se com a rigidez da cosmografia ou com o ensino da matemática, porque se esqueciam de dizer-lhes que tais ciências não passam, em grande parte, de um maravilhoso instrumento para simplificar o conhecimento das leis naturais. Há algumas décadas, um novo ar paira sobre o ensino, ao que me parece. Há ainda um outro progresso: este conhecimento encontra-se hoje ao alcance de muito mais pessoas do que antes. Diante de tudo isso, penso que podemos nos alegrar.

A Religação dos Saberes- Edgar Morin

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